sábado, 5 de agosto de 2017

O fio que canta

o colégio onde fiz a instrução primária, costumavam organizar uma feira do livro, numa delas comprei duas histórias do Lucky Luke que ainda preservo. Uma, muito pedagógica, colocou a professora de “castigo” a borrar de preto o grande manancial de quadros com desenhos de mulheres nuas nos saloons. A outra história de Morris e René Goscinny metia naturalmente o mais rápido do que a sombra, índios, aldrabões, sabotagens e os pioneiros da instalação do telégrafo nos EUA, ilustrando na perfeição a realidade que contarei. Publicado pela primeira vez no Paris Match, tornou-se no 71º livro do projecto franco-belga em 1977, “Le fil qui chante”, bem poderia ter como tradução “A poupança que pagamos” mas acabou por se definir à letra como “O fio que canta”, expressão dos índios sobre o fenómeno que ocorria na região, o que também não anda longe da realidade, de facto “cantamos”, duas ou três vezes, depende da perspectiva.

A 8 de Agosto próximo, passam-se 3 anos da assinatura de um contrato entre o Governo Regional (GR) com uma empresa do grupo EEM, designada por Emacom, que visava criar uma rede de comunicações privada do GR no âmbito do projecto eGov@Madeira.

Importa recuar a 2014 e relembrar que o GR e PT estavam em maus lençóis financeiros, a última exige por cobrança coerciva as facturas de comunicações pendentes no GR. Este, por sua vez, avança com um projecto que parecia um correctivo à PT como forma de pressão negocial, promovendo uma alternativa que o fizesse poupar cerca de 1.2 milhões de Euros ano, prescindindo dos serviços da PT. O governo da altura lança assim o concurso público internacional (CP03/SRF-DRI/2014 da Secretaria Regional do Plano e Finanças) para a instalação de uma rede de comunicações privada para a administração pública da Madeira, curiosamente excluindo o SESARAM. A EEM, empresa tutelada pelo GR e “braço armado” em muitas ocasiões, concorre e ganha a solução de comunicações exclusiva do GR. A PT, outro concorrente do projecto, discorda do resultado e suspeita de “arranjo” e instrui um processo no Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal. Nesta acção, a PT pede a nulidade do concurso com dois fundamentos, o do preço base de 5,6 milhões de euros indicado como demasiado baixo para a solução que o GR desejava implementar e a duração do contrato de manutenção por 20 anos (até 2034), o que garantia a PT longe por esse tempo, mas que, segundo a empresa de comunicações, não estava devidamente fundamentado por requerer outro procedimento pela razão de se estender por mais de 3 anos. O tribunal só deu razão à PT no segundo argumento do qual o governo recorre. Para tornar mais interessante a situação, o preço que era curto para a PT permite à EEM dar de subempreitada a instalação a duas empresas.

Como se depreende, as etapas do concurso prosseguem, o GR avança e disponibiliza 4.3 milhões de Euros à EEM (85% comparticipado pelo FEDER), sendo 2.7 milhões de euros respeitantes a equipamentos e montagem da infraestrutura e outros 1.5 milhões de Euros relativos a formação, gestão, monitorização e assistência técnica. Se assim fosse, era um “negócio da China” e, pelo valor da despesa anual com a PT, o investimento seria amortizado em 4 anos. Segue-se, naturalmente, outra necessidade, pagar a manutenção e monitorização anual para que o projecto não se desactualizasse ou ficasse ferido de equipamentos essenciais, vai daí, ao custo de implementação segue-se outro custo anual, uma brincadeira de 1.2 milhões de Euros por cada um dos 20 anos. É aqui que todos nós, enquanto contribuintes, começamos a perceber que íamos pagar mais por esta poupança, pois só a manutenção anual tinha o mesmo custo da factura anual da PT (com os preços a descer) ficando unicamente a autonomia como trunfo mas, a história não acaba aqui. Por outro lado, a PT ao colocar o caso em tribunal entorna o caldo ao GR, porque é má fé poder pagar a manutenção anual da rede privada (pelo mesmo valor da factura anual da PT) e não saldar as facturas. Nesta situação, o GR ignora o seu projecto e adjudica, através de diversas secretarias, o serviço de comunicações à MEO (PT) para todo o governo com o intuito de calar e acalmar os pagamentos em dívida.


Neste momento, a poupança do GR resultou num incremento da factura de comunicações pois tem de pagar à PT e honrar o contrato com a Emacom, da qual não resultou todavia nenhuma rede privada e são os funcionários públicos a monitorizar o que existe. Se por um lado tivemos um Secretário do Plano e Finanças de 2014 que se foi entalando com o evoluir da conjuntura, neste momento temos a SRETC, na já tradição da Renovação, a assobiar por via do corte mental com outros governos do mesmo partido. Mas há paralelismos, a exemplo da sugestão de tarifas por via do subsídio da mobilidade aérea, o secretário do cabo submarino teve a veleidade de sugerir o tarifário do futuro ferry e, mais recentemente, alvitrou uma baixa de 16€ ao consumidor nas comunicações, naquele ímpeto de mostrar serviço que acaba em borrão. Preços é matéria exclusiva dos operadores que constroem uma rentabilidade de forma competitiva ou abusiva. O secretário só fica incumbido da feitura do caderno de encargos e do quadro legal das operações de forma inteligente para que os operadores, do que quer que seja, não se aproveitem da incompetência. Para quem já afirmou que a factura das comunicações vai descer 16€ ao consumidor, desconhecendo-se a lógica do número, era bom começar a focar-se na responsabilidade do GR em não pagar duas vezes as comunicações do governo, a rede privada paralisada e a da MEO. Se fizermos contas, afinal não são menos 16€ nas comunicações por cada cliente/contribuinte. À data da implementação do projecto de rede privada de fibra, era esperado que o Governo até tivesse VoIP (chamadas telefónicas sobre a internet) para justificar o investimento e a poupança obtida, no entanto, a realidade é que agora, em vez de uma factura, o governo paga duas à PT com as chamadas telefónicas em separado. Este é um caso em centenas, Deus vai nos providenciar mais Sábados. Com décadas a jorrar euros da Europa, deveríamos ser um povo a viver bem mas ainda pagamos a falência e aturamos o “Diesel & Bloom”.


Diário de Notícias do Funchal
Data: 05-08-2017
Página: 28
Link: O fio que canta
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