sábado, 24 de dezembro de 2016

Promoção de Laranjas

poca de laranjas com o diabo na casca e também de sermão, levadas, quase dadas, sempre com cartão. Provêm das quintas, as da casa, essas coitadas, já não servem a tradição. De preferência com etiqueta e bom nome para dar elã, quase gourmet a caminho da Michelin. Se a variedade ainda assim engana, por culpa da apresentação, quando não verte sumo fica em xeque a cunha e a apelação. Ai, ai, ai, fotógrafo do engano zelando pela agremiação, paga-se um preço tão alto por este custo de produção.
O chefe de família apronta-se à saída de casa, é o momento da verificação, chaveiro, telemóvel, óculos para a falta de vista e acaba-se a reflexão, essa tantas vezes importunada por vozes em cornetão, cá vai mais uma que dispara: - NÃO TEMOS LARANJAS, COMPRA COM CARTÃO! Quis comprovar no “lençol” mas esse forrava a gaiola do rouxinol. O gato, ícone da casa, sempre prostrado em posição esquisita, lança uma pata sobre as orelhas e outra sobre a visão. Calem-se avisos estridentes da reacção, ele não quer saber da promoção, bem, só hesita se também tiver ração.
Chegado aos frescos, banca das laranjas, qual púlpito virado para um congresso, eram de facto imensas, de pôr os nervos em franjas. Sem cor uniforme isto vai ser uma maçada, escolhe-se conforme, bum bum avança a caçada. Da intensa cor uns vêem laranjas, outros abóboras, a alguns sabe a mel silvestre, para os mais indecisos, é tipo Kompal, é um manga-laranja, pende para o lado do maior arraial. Vale tudo, algumas colocam-se vistosas como que a dizer: - se me apalpas … levas-me. Ai a tentação. Retirou a embalagem que descoseu pelo picotado, coisa frágil para a quantidade que enche o saco. De frente para as laranjas sentiu-se jota, quando já vai cota, e traça o rumo nesta vivaça e pueril banca apanhada verde para o consumo. Que saudades de uma boa fruta caseira, apanhada no tempo certo para o presépio de escadaria, esse que nem dá canseira, mas onde o gato não larga a frutaria.
Esperto, o chefe de família começa por cima, distribui mas igual fica, ao apalpar arrepiou-se, estavam gélidas da câmara, a frigorífica. Terminada a transferência de calor apalpou com mais vigor e pressentiu, são das secas Senhor! Meteu no saco respeitando a boa ética, de não apalpar e deixar ficar. Com a experiência obtida foi a outra tonalidade, sempre com as primeiras em cumplicidade. Ao retirar aquela, especificamente, veio outra que amparou com o cotovelo, ai que dores quando chegam ao mesmo tempo. A posição não era ortodoxa mas ninguém viu, os tempos não andam católicos, psiu! Safou-se, e de novo com boa ética meteu a segunda no saco, somou experiência precisando do ábaco. Agora é escolher da mesma tonalidade, contudo as melhores são das mais profundas e decidiu-se por outra variedade. Ao retirar, deslizam sete ou oito para o outro lado onde também há biscoito. A terceira não era má mas agora começa o problema da fartura, decidir qual de tanta apanhadura? Enquanto a quinta mingua, por opção, o baldio aumenta com a selecção.
A pomologia diz-nos que há-as com umbigo enorme, atasca a máquina e não verte sumidade; sem pevides, consome-se mas, dali brota nicles; de casca grossa, viçosa mas com gomos palha; com nome pomposo, das que chamam a atenção mas, azedas que até apertam a tal visão.
Existe até a variedade “sanguínea”, laranja por fora mas vermelha por dentro. Há outra chamada canalha, da prateleira não tenho ideia, faz-se um bolo sem falha, sai lindo do forno para admiração da assembleia, aplica-se o sumo, afunda a sobremesa, que tristeza, só me faltava a diarreia.
E a cimboa? Mais do que um ornamento, uma delícia! Combina a forma da laranja com a cor do limão, sem malícia, dá um porta-enxerto de assombrar, apesar de saborosa metade é para descascar. Que escolha faz este supermercado, com tanto doutor e engenheiro sem escola, em gabinete a estudar? Pomologia rara que despreza como fruta “feia”, quando sumarenta, é de pasmar!
A odisseia prossegue, a mãozinha viril lá foi à fruta queque, que ideia imbecil! O mundo desaba-lhe, por sorte, na anarquia das roliças, só uma sobrou para as hortaliças. Estrelinhas esvoaçam e anjinhos tocam harpa, está feita a ornamentação, finalmente se percebe o que é Natal com um safanão. O obstáculo não cunhou a bicha que se estatelou, foi ao chão. A falta que fazem duas mãos ocupadas na fruta. O talude cede mas está tudo controlado, desde que se mantenha de quatro. Olhando para cima, pânico! O ananás com imponente coroa a perder alicerces. Pelo amor de Deus, aguenta-te. Deitado e espalmando, qual vibrador de laje tirando bolhas de ar, vai observando a laranja derrotada, a que caiu, a rolar pelo chão. Que triste fim da produção. Levará um coice espremida pelo carrinho em contramão ou alguém civilizado apanha com a mão? Não! Voltou o desassossego dos grisalhos com o laranjal, a velha ficou na horizontal. Que faz ela aqui se temos a inclusão em festival?! Raios partam a velha mas, tratem-na com carinho e atenção, não estraguem a promoção. Lembrem-se, a laranja caridosa sacia a pobreza viciando a condição.
Em tão pouco tempo a nova remessa esgota, que grande sucesso esta promoção, a altiva cúpula desbota, as laranjas são levadas, de uma a uma, pela mão. É chegada a hora da laranja-cenoura, uma bebida de eleição, quando faltam as primeiras acenam-se com as últimas, mantém a folia, parece um presentão.
Mais um ano passado, sempre a mesma conclusão, com tremendo enfado, o que nos vendem é ilusão. Fazemos figura de pato, com laranja, para manter a tradição.
Enfiado, o chefe de família assoma-se ao balcão: - nem que talhe, quero um batido de limão!



Diário de Notícias do Funchal
Data: 24-12-2016

Página: 27
Link: Promoção de Laranjas

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